top of page

Mas afinal o que posso comer?

Melhorar a saúde através da alimentação é possível, é essencial e existem várias formas de o fazer.


Uma alimentação equilibrada deve ter como premissa principal a individualidade de cada um. Daí que seja tão importante que nos voltemos a colocar numa posição activa, relativamente às nossas escolhas alimentares.


Esta posição de controlo implica trabalho, esforço, estudo e, sobretudo, abrir mão de uma situação confortável, que é a de acatar cegamente orientações de terceiros.


Seguimos numa busca incessante por respostas e rapidamente nos vemos envolvidos no ruído gerado pelo imenso manancial de informação disponível. E é esse ruído que nos impede de ouvir o nosso corpo (e o dos nossos filhos).


Mas se o ruído é parte do problema, ignorá-lo, é parte da solução. Passo a explicar.


Como qualquer ciência a nutrição está sujeita a escrutínio. Não é imutável, não é estática, não é dogmática. Não é uma religião, ainda que muitas vezes seja abordada como tal. E contrariamente às demais, na nutrição, o conhecimento novo encontra muita resistência.


Sim, é uma ciência, mas daquelas com que temos de lidar todos os dias. Uma ciência que influencia a nossa cultura, os nossos hábitos, a nossa relação com os outros. O património de um país inclui a sua culinária…Grande parte das nossas melhores recordações de infância envolvem comida: natal, aniversários, lanche na casa da avó…Até um jogo de futebol é pretexto para acepipes e comezainas :)


Por isso, é legítimo dizer que nutrição é bem mais que nutrientes, vitaminas e doses diárias recomendadas. Na Nutrição acomodamos emoções, procuramos conforto, partilhamos momentos. Assim, não será de estranhar uma certa resistência à mudança de hábitos, em linha com as últimas orientações “superiores”. Somos animais de rotinas :)


E para piorar, quando ainda estamos no processo de tentar perceber e seguir as regras vigentes, acontecem autênticos golpes de estado e tudo se altera…Vemo-nos encurralados entre a tal resistência à mudança e uma incapacidade de tomar decisões, pois tudo parece demasiado confuso e contraditório….


E isto acontece porque a ciência evolui, claro. Mas haverá outras razões?


Convém não esquecer que a alimentação é um negócio. A indústria alimentar é um gigante esfomeado que gera incessantemente novos produtos e formulações para satisfazer (ou criar) novas tendências. A indústria não se importa com a nossa saúde, apenas com a sua. E tenta seduzir-nos com produtos que nos ofuscam os sentidos e nos gritam: LEVA-ME CONTIGO!


Foi o que aconteceu no final dos anos 70, quando a indústria respondeu em massa às (infundadas) orientações nutricionais do governo americano sobre a necessidade de reduzir o consumo de gordura da dieta. Assim nasceu a era low fat, à qual, praticamente todos aderimos. Infelizmente.


Os media também ajudam a instalar a confusão e o caos. Lemos muitas vezes “Um novo estudo provou que…” “Estudo mais recente desmente que…”... Para quem não é da área das ciências/investigação, a fonte de conhecimento é muitas vezes os media. Mas um artigo de jornal, seja em que formato for, não é um estudo.


[vê-se frequentemente esta confusão, especialmente nas redes sociais]


Sendo bem elaborado, o artigo de jornal reflecte o conteúdo do estudo, numa versão resumida e com uma linguagem mais acessível. E é muitas vezes aqui que reside o problema. A linguagem científica é muito complexa, dando azo a algumas más interpretações e extrapolações.


Também é frequente que o real objectivo do jornal seja atrair clicks, em vez de informar o público de forma correcta. Muitas vezes, a agenda é tão somente essa, e para tal são usados títulos sensacionalistas e enganosos.


Assim, para nossa protecção, torna-se útil saber que existem vários tipos de estudos, com diferentes níveis de evidência, e aprender a distingui-los.



A investigação clássica em nutrição baseia-se sobretudo em estudos observacionais. Estudos que observam um ou vários indivíduos e tentam perceber de que forma é que a sua exposição a determinado factor, influencia o risco de determinado desfecho.


Dando como exemplo o consumo de leite (factor) e a osteoporose (desfecho).


Um estudo observacional responderia a questões como:


  • Existe alguma associação entre o consumo de leite e a osteoporose?

  • Caso exista, essa associação é positiva ou negativa (mais leite, mais osteoporose vs. ou mais leite, menos osteoporose)?

  • Em quanto é que o consumo de leite aumenta (ou diminui) o risco de osteoporose?

  • Existem variáveis de confusão a ter em conta?


Uma característica importante destes estudos é que ajudam a levantar hipóteses baseadas nas associações encontradas entre as variáveis. Mas importantíssimo: não estabelecem causa-efeito. Não nos dizem que um baixo (ou elevado) consumo de leite CAUSA (ou NÃO CAUSA) osteoporose. Respondem que existe (ou não existe) associação, mas nunca podem responder que existe uma causalidade.


[isto é muitooo importante]


Mais acima na pirâmide, surgem os ensaios clínicos randomizados (ou aleatorizados), pois os indivíduos são alocados aleatoriamente a diferentes grupos. Esta técnica permite reduzir erros (conscientes ou inconscientes) por parte dos investigadores, garantindo que os grupos são comparáveis entre si. Sendo comparáveis, a influência das variáveis de confusão é reduzida (pois, em princípio, estão igualmente distribuídas nos grupos).


No exemplo acima, assumindo-se que o sol é uma variável de confusão (pois influencia a produção de vitamina D, que por sua vez afecta a fixação do cálcio), a aleatorização evitaria que em determinado grupo houvesse uma maior percentagem de indivíduos expostos ao sol, enviesando os resultados obtidos.


Neste tipo de estudos é possível inferir acerca de uma eventual causalidade entre determinado factor e desfecho.


Apesar da sua maior robustez científica, os ensaios clínicos randomizados também podem ver a sua qualidade afectada por vários factores, nos quais se incluem o tamanho e representatividade da população amostrada.


O grande problema é que na maioria das vezes, as manchetes sensacionalistas de “A causa B” baseiam-se em estudos observacionais, embora saibamos que estes estudos não estabelecem causa-efeito. Também existem artigos que reflectem ensaios clínicos randomizados, porém de fraca qualidade, quiçá patrocinados pela indústria e publicados em revistas científicas menos exigentes.


E está instalado o caos…Já ninguém sabe em quem acreditar, o que comer e o que dar a comer…


Mas voltando ao início: há várias formas de ser saudável.


Independentemente dos rótulos que nós, seres humanos, gostamos de inventar, o que a ciência aponta é que uma alimentação saudável pressupõe que seja rica em vegetais, complementada por proteína de boa qualidade (de origem vegetal ou animal), gordura (das quais se excluem as refinadas - os óleos vegetais polinsaturados ómega 6; e as que são "criadas em laboratório" - gorduras trans e hidrogenadas!) e restrita no que diz respeito a açúcares e alimentos processados.


Fácil, certo?


Obviamente que existem correntes que se baseiam em cereais e leguminosas, enquanto que outras os dispensam. Há quem privilegie a fruta e também há quem opte por frutos menos doce. Quem seja mais liberal com as gorduras, quem seja regrado quanto ao seu consumo. Quem exclua a carne, quem a substitua.


Mas apesar do aparente conflito gerado pelas diversas correntes, existe algo de comum àquelas que comprovadamente nos devolvem saúde e vitalidade. E a intersecção é precisamente a procura de uma dieta baseada em alimentos de verdade, obedecendo sempre à premissa da individualidade.


Por isso, ignoremos o ruído. Deixemos de esperar que nos digam o que comer, quanto comer, com que frequência comer…


Se queremos ser saudáveis, temos de recuperar o controlo sobre as nossas decisões, que devem ser o mais informadas possível e baseadas tanto em (boa) ciência, como nas respostas que recebemos do nosso corpo.


Mas para haver respostas temos de perguntar. E para decidir temos de ouvir :)



bottom of page