top of page

Beber café pode prevenir cancro do fígado?


Esta foi a manchete efusiva do The Guardian sobre um novo estudo que investigou o efeito do consumo de café, na redução do risco de carcinoma hepatocelular, um tipo de cancro do fígado. Como sempre, outros jornais online seguiram a tendência com títulos no mesmo registo (Daily Mail, The Telegraph...).

Ergamos as nossas chávenas de café, brindemos a esta boa notícia e partilhemos até à exaustão nas nossas redes sociais, porque, mais uma vez, nós (os consumidores de café) é que tínhamos razão!

Mas quando a manchete é grande, o canal de NUTRícias desconfia.

Vamos à NUTRícia...

O estudo "Coffee, including caffeinated and decaffeinated coffee, and the risk of hepatocellular carcinoma: a systematic review and dose–response meta-analysis" foi publicado há uns dias na Gastroenterology and Hepatology.

Pelo título percebe-se que se trata de uma metanálise. A metanálise é uma técnica estatística, que integra os resultados obtidos por um conjunto de estudos individuais, sobre determinada questão de interesse, produzindo uma estimativa global. Neste caso particular, a metanálise reuniu estudos que investigaram o consumo de café e o cancro do fígado (ou seja, não só carcinoma hepatocelular).

Em termos de hierarquia de nível de evidência, as metanálises são os estudos epidemiológicos que ocupam o topo, isto é, são os que fornecem a melhor evidência científica disponível sobre determinada questão.

O que não pressupõe que a metanálise forneça a resposta definitiva à questão colocada, pois a metanálise é tanto mais forte quanto maior for o nível de evidência dos estudos que a compõem (e a qualidade dos mesmos). Significando na prática que uma metanálise de estudos experimentais (por exemplo ensaios clínicos) terá mais força estatística que uma metanálise de estudos observacionais (por exemplo estudos de cohorte).

Pois, o café!

Há que referir novamente que o estudo incidiu sobre um tipo específico de cancro no fígado: o carcinoma hepatocelular (CHC). O principal factor de risco para o CHC é a cirrose (estádio avançado de doença do fígado), e como tal, todos os factores que contribuem para a doença crónica do fígado, como infecções virais (hepatites B e C), alcoolismo, obesidade, diabetes tipo 2, tabagismo...são também factores de risco para o CHC.

Esta metanálise incluiu 18 estudos de cohorte (com 2 272 642 participantes), 2 905 estudos de caso, 8 estudos de caso-controlo (com 1 825 casos e 4 652 controlos) e verificou-se que:

  • Existe uma associação inversa entre o consumo extra de duas chávenas de café e o risco de CHC (maior consumo de café, menor risco).

  • O consumo extra de duas chávenas de café foi associado a uma redução de 35% do risco de CHC (RR 0.65, 95% CI 0.59 a 0.72).

  • A associação foi mais fraca nos estudos de cohorte (RR 0.71, 95% CI 0.65 a 0.77), relativamente aos estudos de caso-controlo (RR 0.53, 95% CI 0.41 a 0.69).

  • A associação não foi significativamente alterada pelo estádio da doença, consumo elevado de álcool, elevado índice de massa corporal, diabetes tipo 2, tabagismo, hepatite B e C (factores de risco para o CHC).

E o que podemos concluir daqui? Os autores assumem que...quase nada "However, due to a lack of randomised controlled trials, potential publication bias and there being no accepted definition of coffee, the quality of evidence under the GRADE criteria was ‘very low'."

Ou seja:

  • A metanálise baseou-se em estudos observacionais: não há relação causa-efeito.

  • A heterogeneidade entre os estudos foi estatisticamente significativa, o que determina cautela na interpetação do resultado da metanálise.

  • Existem potenciais estudos que não foram considerados na metanálise e que ao serem utilizados, alterariam o resultado final no sentido de um menor efeito do café na redução do risco de CHC (o tal publication bias).

  • A associação foi mais fraca nos estudos de cohorte cuja qualidade é, regra geral, superior aos estudos de caso-controlo.

Escrever em letras gordas que beber café pode prevenir o cancro do fígado é falacioso não só porque a metanálise se baseou em estudos observacionais, que não estabelecem causa-efeito (reduzir o risco não é equivalente a prevenir), como porque o carcinoma hepatocelular, é "apenas" um dos tipos de cancro do fígado.

Além disso, mesmo para uma metanálise de estudos observacionais, as evidências são muito fracas e os próprios autores sublinham esse facto, atribuindo as "culpas" à ausência de ensaios clínicos randomizados, presença de heterogeneidade entre os estudos, publication bias e de não haver indicação no tipo de café utilizado, já que outros estudos apontam para que o efeito protector ao nível do fígado, possa variar consoante as propriedades químicas do café.

Espero ter poupado um click desnecessário :)


bottom of page