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Glúten e diabetes, há relação?

"Dietas baixas em glúten podem aumentar risco de diabetes tipo 2" (Revista Visão online - 12 Março 2017).

Esta notícia cheira a pão fresquinho, acabado de sair do forno...

É a típica partilha do "tás a ver?". Percebe-se porquê: trata-se de um estudo que revela uma associação entre o baixo consumo de glúten e o aumento do risco de diabetes tipo 2. E vem de...Haaaaarvard!

Vamos então à verdadeira NUTRícia...

Os resultados deste novo estudo foram apresentados numa conferência da American Heart Association (AHA) que decorreu de 7 a 10 de Março deste ano. De acordo com o seu primeiro autor, o Doutor Geng Zong, o objectivo era determinar o efeito do consumo de glúten na saúde de indivíduos sem indicação médica para restringir esta proteína (não celíacos).

Trata-se portanto de um estudo que ainda não foi publicado numa revista científica peer-reviewed*.

*[A publicação de um artigo numa revista científica é precedida de uma revisão por investigadores da mesma área - os pares. Estes avaliam as diversas secções do estudo, identificam possíveis erros e aspectos a melhorar. É um processo que atesta a qualidade do artigo para publicação e o seu reconhecimento pela comunidade científica. Como nem todas as revistas possuem o mesmo grau de exigência, não é estranho que existam "estudos e estudos", pois também há "revistas e revistas".]

O facto do estudo ainda não ter sido publicado e apenas termos acesso ao resumo, impede a completa análise da NUTRícia. Mas vamos lá.

Sabe-se que os dados utilizados foram recolhidos no âmbito de três grandes estudos observacionais: Nurses' Health Study I e II (NHSI e NHSII) e Health Professionals Follow-up Study (HPFS).

Ao contrário dos estudos controlados e randomizados, em que os participantes são alocados aleatoriamente a grupos com intervenções distintas; os estudos observacionais apenas "observam" os participantes ao longo do tempo. Apesar da existência de imensas variáveis de confusão, estes estudos são úteis pois podem revelar associações entre variáveis. Mas é importante reter que estudos observacionais não estabelecem relação causa-efeito*.

*[Um exemplo: Imaginemos que a partir de determinado estudo observacional se verifica uma associação positiva entre "existência de viatura própria" e "frequência semanal de actividade física" . Ou seja, ter viatura própria está associada a uma maior frequência semanal de actividade física. Será que ter viatura própria é a causa da maior frequência de actividade física? Não. Talvez as pessoas com viatura própria tenham maior disponibilidade financeira e possam ir ao ginásio, fazer caminhadas ao fim-de-semana, ou até consigam chegar mais cedo a casa e ter tempo de dar uma corrida. No fundo a "existência de viatura própria", pode ser um marcador para uma subpopulação com características que lhe permitam exercitar-se com mais frequência.]

Voltando ao estudo. A parca informação disponível indica que os dados de consumo de glúten, utilizados para estabelecer a associação com a diabetes, foram obtidos através de questionários. Os participantes do NHS (I e II) e do HPFS respondiam a questionários a cada dois a quatro anos.

Os questionários de frequência alimentar (prática de exercício físico, entre outros) são muito usados em nutrição. Ultimamente vários autores têm-se insurgido contra a utilização deste tipo de ferramentas, que consideram imprecisas e inadequadas.

É fácil perceber porquê. O que foi que comeste ontem ao pequeno-almoço? E dia 10 de Março ao jantar? A menos que sejamos muito cuidadosos com a nossa alimentação, ou mantenhamos um diário, ninguém se vai lembrar com 100% de certeza o que comeu no dia x. E isto agrava-se quanto mais tempo tiver passado sobre os episódios a reportar - posso lembrar-me o que comi ontem, mas não me lembro o que comi há três meses. Além do esquecimento "natural", por vezes também existe um esquecimento "consciente". Como toda a gente tem mais ou menos noção do que é "aceitável" ou "razoável", os participantes subestimam uns parâmeros e sobrestimam outros. Natureza humana :)

Ao analisar 30 anos de questionários, a equipa de Harvard verificou o seguinte:

  • Os participantes reportaram, em média, um consumo diário de glúten de cerca de 5.8g no NHS I, 6.8g no NHS II, e 7.1g no HPFS.

  • O consumo de glúten estava correlacionado com consumo de hidratos de carbono, especialmente grãos refinados, amidos e fibra cereal.

  • Os que reportaram maior consumo de glúten tiveram menor risco de desenvoler diabetes tipo 2.

Num artigo sobre o estudo, publicado no site da AHA, constam os seguintes dados adicionais:

  • A maioria dos participantes reportou um consumo de glúten inferior a 12g por dia.

  • Os participantes que reportaram menor consumo de glúten também reportaram menor consumo de fibra.

  • Após ajustar o consumo de fibra, verificaram que os participantes que consumiam mais glúten tiveram 13% menos risco de desenvolver a doença do que aqueles que reportaram menor consumo de glúten (menos de 4g por dia).

[Infelizmente não existem dados sobre as pessoas que não consumiam glúten de todo. É referido que à altura em que decorreram os estudos, a dieta sem glúten para não celíacos ainda não estava na "moda".]

 

Para explicar a associação negativa encontrada entre consumo de glúten e risco de desenvolver diabetes tipo 2, foi levantada a seguinte hipótese: 1) Os alimentos sem glúten contêm menos fibra na sua composição, relativamente aos alimentos com glúten. 2) A fibra exerce um efeito protector contra o desenvolvimento da doença. 3) Assim, os participantes que consumiam menos glúten tiveram maior propensão para desenvolver a doença.

Citado no artigo da AHA, o Doutor Zong argumenta que os alimentos sem glúten, além de conterem menos fibra, tendem também a ser menos nutritivos, sendo por vezes até mais caros que os alimentos com glúten.

[Menos nutritivos e mais caros? Só para ficarmos esclarecidos: estamos a falar de alimentos altamente processados sem glúten? Uma dieta de baixo (ou nenhum glúten) implica o consumo de alimentos substitutos, de qualidade inferior? Não é perfeitamente possível evitar o glúten, consumindo uma variedade de alimentos naturais, ricos em fibra e com elevada densidade nutricional?]

Nada como os factos:

  • Trata-se de um estudo observacional, que não estabelece causa-efeito.

  • Não existe informação relativamente a participantes que não consumiam glúten de todo [o que daria um excelente "grupo controlo"].

  • Foram utilizadas ferramentas de questionável precisão e que incidem sobre um período de tempo longo (dois a quatro anos).

Se o risco acrescido de desenvolver diabetes tipo 2 se deve ao pouco glúten, à pouca fibra, ao consumo de alimentos substitutos menos nutritivos, aos erros inerentes aos questionários,...nem Harvard sabe.

Faz lembrar aqueles desenhos, em que vamos juntando linhas aos números e, a pouco e pouco, surge uma imagem.

Neste caso faltam demasiados números para se ver alguma coisa, pelo que faremos nova ligação a Havard quando o estudo for publicado :)


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